quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Crônica da Nova Canudos

Aonde um século atrás soavam rajadas das metralhadoras, trazidas pela república do Brasil para estraçalhar os pobres e seus devaneios católico-sertanejos, uma vovó, com seu novo celular, insiste para que o neto a ensine a usar o aparelho.  O sertanejo é antes de tudo um forte: expugnado palmo a palmo  e mesmo a contragosto e com pouca paciência o neto ensina  a avó a mandar mensagens via facebook e whatsapp. A vovó, o velho sertão, neta da brava gente que resistiu no arraial da Canudos do Bom Jesus Conselheiro  quer apreender um pouco do novo sertão, da mensagem rápida, da motocicleta barulhenta, um sertão colorido, das músicas de forró eletrônico e tecnobrega, das roupas apertadas e cabelos longos do neto. Um sertão que distoa daquele sertão dos vaqueiros de cor marrom encouraçado e enlaçado a um passado que não volta jamais.   Ninguém entra em um mesmo sertão uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo. Os sertões já serão outros.  




domingo, 20 de novembro de 2016

A Margarida e um Bob Dylan sertanejo


Para meu pai: Antônio Enio no seu aniversário

Em um primeiro de maio de 1983, interior da Paraíba, um rapaz magro de seus vinte e poucos anos sobe em um palco improvisado pega o violão e toca uma música de protesto, a canção "Cidadão" de Zé Geraldo. Na platéia uma mulher forte ouve cada verso da música: Margarida Maria Alves, sindicalista, que morreu " na luta mas não de fome" assassinada covarde e brutalmente a mando desses ai que vivem de massacrar os pobres desse país.

O rapaz cabeludo passa nos dedos os acordes e dedilha na memória a lembrança de sua infância pobre e, assim, canta a luta e a esperança por dias melhores. Mesmo que o tempo lhe tire alguns dos cabelos. Mesmo que os homens perversos venham pisar e arrancar as flores.

sábado, 11 de abril de 2015

Sérgio Sampaio:o sagrado direito de fracassar e de ironizar o próprio fracasso

     Foi graças a comunidade “Malditos e Marginais da MPB” do já finado Orkut que conheci as músicas do cantor Sérgio Sampaio. Tanto lá, como nas descrições de Wikipedia e de textos espalhados em blogs pela internet é quase consenso de Sampaio enquanto o cantor mais maldito do grupos dos “ malditos” dos anos 70 – a exemplo de Jards Macalé, Jorge Mautner, Luiz Melodia, Tom Zé e Walter Franco, Belchior, Odair José. Sérgio Sampaio ficou pra posteridade como alguém que ganhou festivais, emplacou o sucesso “ Bloco na Rua” em 1972, mas que foi sendo esquecido nas décadas seguinte diante de uma série de infortúnios, brigas com gravadoras e problemas pessoais.
Convido a refletir sobre a pecha de amaldiçoada sob uma história de vida como a de Sérgio Sampaio. Mas por que maldito? Por ser talentoso e esbarrar em limitações do mercado musical, dificuldades de personalidade ou falta de sorte? Quem nunca não conseguiu superar seus próprios limites? Quem nunca viveu e não aprendeu? nunca provou a farinha do desprezo, da letra de Jards Macalé? Se pararmos pra pensar, será que não somos todos malditos?
    Não podemos deixar de refletir o quão injusto jogar a marca de fracasso individual em muitas pessoas que não se enquadraram, não se adaptaram, ou sequer escolheram nascer e viver em posições socialmente rebaixadas. Mozart, um gênio nato, filho de um burguês que tentava educar o filho as maneiras de ser nobre, fracassou em ser músico autônomo diante de uma sociedade agressivamente desigual entre poderosos membros da corte e marginalizados burgueses no fim do século XVIII. Morreu amargurado e doente, abandonado pelos seus superiores da corte, por um público ouvinte e pelas pessoas que amava, e foi sepultado como indigente. “ Ele simplesmente desistiu” como diz o sociólogo Norbert Elias em um interessante ensaio sobre a biografia de Mozart.
     Diferente de Mozart, Sérgio Sampaio, filho de um fabricante de tamamcos e de uma professora, fracassou mas não desistiu. A visão que faz do próprio fracasso tem muito a nos ensinar. Ironizar, fazer piada com a própria condição de “quase sucesso”; aquele que “poderia ter sido mas não foi” na expressão de um poema de Manuel Bandeira. Nas palavras do próprio Sampaio no jazz “ Que Loucura” do disco Tem de Acontecer: “Saí do palco e fui pra plateia/sai da sala e fui pro porão”  



A posição de marginal também pode ser vista no samba de alegre instrumental “ Ninguem vive por mim”: 


“Fui tratado como um louco, e
enganado feito um bobo
Devorado pelos lobos, derrotado sim
Fui posto de lado e fui um marginal enfim 


    A ironia com o ostracismo também entra na pessimista “ Tem de Acontecer” ao finalizar os versos de uma separação amorosa: 


"Se um vai perderOutro vai ganharÉ assim que eu vejo a vidaE ninguém vai mudarEu daria tudo
Pra não ver você chumbada
Pra não ver você baleada
Pra não ver você arriada
A mulher abandonada
Mas não posso fazer nada
Eu sou (sou só) um compositor popular "  

 



 Talvez nada será mais ilustrativo de uma talentosa homenagem de um artista ao próprio fracasso do que a letra de “ Meu Pobre Blues”, composta por Sampaio e endereçada a um conterrâneo de Cachoeiro do Itapemirim-ES e também cabeludo e gênio musical: Roberto Carlos 

 



 As letras de Sérgio Sampaio podem nos fazer pensar não sobre o extraordinário, mas  sobre o normal, o cotidiano, o falho, o contraditório,  o fracassado, o que tem defeitos, o anônimo , enfim,  o que há de mais banal e que é grande matéria prima das nossas biografias.  Assim também faz de Belchior e sua alucinação é suportar o dia-a-dia. ou as canções cantadas pela cambaleante voz de Raul Seixas nos últimos discos. 

Analisar o que fala um outsider como Sérgio Sampaio pode nos fazer pensar não sobre o extraordinário, mas sobre o normal, o cotidiano, o falho, o contraditório, o fracassado, o limitado, o anônimo , enfim, o que há de mais banal e e cotidiano que é matéria prima das nossas biografias. E não falamos apenas sobre músicas e artistas: precisamos fazer escutar diferentes vozes para, no mínimo, relativizar toda a imposição da ilusão biográfica que insiste em encarcerar nossas vidas em uma cruel e insustentável busca diária por fazer algo grandioso, distinto, épico, extraordinário. Claro que é ótimo e até necessário termos ambições, projetos, sermos estimulados a aprender e tentar melhorar habilidades, trabalhar pela realização de utopias, buscar um mundo mais justo para as próximas gerações etc. Mas isso passa longe de uma agressiva abordagem que passa por vários espaços - jornalismo; escola; universidade; mercado de trabalho; família etc. - e que propõe entregar nosso tempo de vida em cartilhas e fraseologias agressivas que produzem sensações de decepção por não nos enquadrarmos em modelos de sucesso. Temos de reconhecer que podemos enquanto malditos - e sem usar nenhum “apesar” - também sermos felizes. Pelo direito de ” botar o bloco na rua “ , sem encarcerar nossas imperfeitas biografias naquela velha opinião formada sobre tudo que nos torna obsessivos por reconhecimento e sucesso imediato.

domingo, 17 de agosto de 2014

Chega de saudade ( Parte 2): Os Terroristas da Saudade



Já não é novidade a notícia de que cientistas criaram uma Máquina da Saudade. De tanto veicular nos jornais as pessoas já sabem como funciona o aparelho: um mecanismo que se conecta ao corpo humano e detecta transmissores da “saudade”, o que permite que a máquina inicie um processo de aceleração e transferência de átomos a longas distâncias. Simples: se você sentir saudade, a máquina lhe transporta aonde quiser.   Mas atenção as seguintes restrições: a máquina apenas ativa se , após conectada a cabeça e também a corrente sanguínea, captar operação cerebral e substâncias ligadas ao sentimento de saudade.  Além das discussões que a nova invenção gerou nas academias intelectuais filosóficas, literárias, sociológicas, lingüísticas, antropológicas e psicanalíticas haviam preocupações relacionadas ao uso comercial e a “popularização” dos serviços da máquina.
Para diminuir o medo de entrar numa cabine, ter conectado a eletrodos na cabeça, receber injeção no braço, e da leve sensação de enjôo após o teletransporte, iniciou-se uma propaganda nas grandes emissoras de comunicação para tornar a Máquina viável para todos. Na verdade, uma rápida análise das empresas patrocinadoras da campanha “pela saudade” podíamos ver que nessa campanha havia claros interesses comerciais.  Enquanto alguns poetas louvavam o fato de uma máquina tão revolucionária ter o seu funcionamento subordinada ao romantismo da saudade, empresários, executivos, acionistas de multinacionais e chefes de estado reclamavam que a oportunidade do teletransporte  facilitaria a suas viagens de negócio, mas precisavam superar as exigências bioquímicas, cerebrais e sentimentais da Máquina. Para isso, já tinha a promessa de grandes laboratórios de farmacêutica que se propuseram a isolar “neurotransmissores da saudade” e assim, fazer uma “injeção” ou, após certo avanço nas pesquisas, uma pílula  que se juntaria as outras tantas que os empresários tomam antes, durante e depois as suas seguidas viagens e conexões de avião.
Porém, a mídia e as grandes multinacionais e os líderes mundiais começaram a se preocupar com outro problema. No momento havia apenas quatro “Máquinas da Saudade” no mundo.  Duas dessas estavam em posse de grandes Estados nação, que tinham seus governos guiados por corporações de grande volume de capital que financiavam, eleição após eleição, seja conservadores ou progressistas,  as campanhas presidenciais.  Uma máquina ficou com a instituição das Nações Unidas – na verdade era uma máquina reserva, deveria ficar guardada pra usos de emergência. A quarta máquina era o problema pois havia sido roubada de uma base militar e não sabia exato o seu paradeiro.     
Uma rápida pesquisa em vídeos que circulavam pela internet encontramos um vídeo de um grupo de pessoas que afirmam ter roubado essa quarta Máquina.  Já com um número considerável de visualizações, a gravação mostrava apenas uma mulher encapuzada que dizia ser a “própria Saudade” e lia o seguinte texto:
 1) Chega de Saudade: a saudade é uma angústia de todo ser humano, portanto, deve ser elevada a categoria de direito universal suprir as necessidades da saudade. Se todos sentem saudade, não faz sentido o uso da Máquina da Saudade estar restrita a alguns grupos privilegiados. É urgente popularizar a Máquina para todas as pessoas, independente de nacionalidade, classe social, idioma, religião, cor ou orientação sexual.
2) Chega de Saudade: A humanidade criou a escrita, o telégrafo, o telefone, a viagem de avião, a internet. Essas invenções deveriam servir para diminuir tempo e distância, nos tornar mais próximos, diminuindo ou eliminando obstáculos para os encontros entre humanos. Em resumo: deveriam diminuir a saudade.    Contudo o que vemos hoje é diferente: as pessoas viajam tanto de avião que esqueceram a magia que é estar voando no céu ” e apenas reclamam dos serviços de bordo, da demora das empresas, estão mergulhados nas obrigações dos seus empregos de cumprir horários.  Quanto a internet, somos escravizados pelos e-mails, redes sociais, postagens de fotos e aplicativos no celular que nos avisam a toda hora nossos compromissos de trabalho e com o  fingimento de uma imagem que nós não somos. A saudade é o motor das grandes invenções tecnológicas da humanidade. Já que temos consciência disso não podemos permitir que aconteça com a Máquina da Saudade a deturpação que já aconteceu com o avião e com a internet.”
3)  Chega de Saudade: Buscaremos a saudade no mais cotidiano das pessoas. A música é a grande força motora da saudade.  Nos downloads de músicas: os sambas nostálgicos, boleros melancólicos,  os fados, canções românticas das mais cafonas, das baladas dos rocks. Estamos atentos  as postagens em redes sociais, ligações de celular e nas conversas mais cotidianas. Se preciso, bateremos de porta em porta. Estamos disfarçados de padres, psicólogos, advogados, músicos, vendedores de seguro. Nosso objetivo é fazer com que os mais necessitados, tanto de dinheiro como da distância das pessoas queridas, tenham garantida uma viagem gratuita dentro da Máquina da Saudade.

Foram estas  reivindicações que, em uma época passada “pré- Máquina da Saudade” soariam como piadas e resmungos de qualquer adolescente sonhador, começaram a preocupar a política mundial.
A Grande Mídia  logo criou um nome pejorativo para os ladrões da máquina: eram os “ Terroristas da Saudade”. Esse nome foi alvo de grandes contorcionismos para os jornais. Primeiro, ligaram os Terroristas da Saudade – um nome realmente horrível e de mal gosto -  a alguma suposta ação comercial das decadentes empresas do mercado fonográfico .  Jornalistas diziam que era tudo uma farsa sobre o roubo da máquina: na verdade era uma ação comercial das gravadoras musicais, um último suspiro de um mercado em decadência. Foram mobilizados produtores e críticos para mostrar que, a notícia de roubo da máquina era parte de uma farsa, um viral, um último suspiro das gravadoras musicais em falência, para anunciar “ Terroristas da Saudade” como uma nova banda de “jovens que iriam revolucionar a música pop” .
O argumento religioso também foi mobilizado pela Mídia para criticar os assim proclamados “ Terroristas da Saudade”. Se dizia que eram um grupo separatista que agia por meio de luta armada e intimidações.  Boatos diziam que os Terroristas da Saudade eram uma perigosa comunidade religiosa liderada por charlatões, pastores, monges, espíritas e padres fanáticos que “se diziam anjos” e iriam de casa em casa fazer falsas promessas de que a Máquina poderia suprir a saudade dos seus parentes já falecidos. Essa nova religião de uma deusa chamada “Saudade” realizaria o milagre de órfãos e viúvas, através da Máquina roubada que seria aperfeiçoada para alcançar o paraíso, purgatório, inferno ou qualquer outro local que a fé humana criou para despejar a lembrança  dos seus  mortos.

. Não se sabe se por sucesso ou medo de um apoio da população as investidas dos Terroristas da Saudade os governos começaram a pensar em uma democratização da Máquina da Saudade . O que seria o direito de todo cidadão para suprir a sua saudade? Todo cidadão, pagador de impostos, teria direito a uma “cota de saudade” viabilizada pelo governo?  Podemos mesurar saudade em impostos, financiamentos de créditos, bolsas de estudo, cotas, subsídios e cortes de gastos? Como investir nas políticas de saudade como um atrativo de votos nas campanhas eleitorais? Através dessas perguntas digladiavam deputados, senadores, governadores e presidentes de vários países. Empresários diziam que “por ser um sentimento importante, a saudade poderia ser aproveitada como valor de mercado”. O mais importante para eles era que dessem prosseguimento as pesquisas para tornar a Máquina utilizável para fins comerciais.   “Se os pobres querem usar a Máquina da Saudade que trabalhem e busquem pagar o teletransporte com seus próprios méritos.  É melhor ensinar ter a saudade do que dar assim de graça”. Eis o jargão de políticos aliados dos analistas de mercado financeiro.  Já os filhos destes políticos que estudavam em grandes escolas de arte se diziam simpatizantes das transgressões dos Terroristas da Saudade.  Argumentavam que” ter saudade” era um aspecto esteticamente interessante da condição universal humana. Porém, esses mesmos artistas e intelectuais afirmavam que os pobres não tinha uma saudade esteticamente elaborada para usufruir da Máquina da Saudade. Sobre esse tema, um estudo publicado por um grupo de sociólogos, conclui com os seguintes trechos: “as pessoas pobres sentem  melancolias, tristezas e até sentimentos parecidos com uma nostalgia mas com certeza não sentem saudade:  isso exige uma senso estético de nostalgia bem elaborado” (p.56) e, em seguida diz que “o problema da saudade entre as classes mais humildes eram as músicas de baixa qualidade que os pobres ouviam, ao sentir saudade” (p.64). A partir dos resultados desses estudos – financiados integralmente pelas empresas interessadas na Saudade - os governos já preparavam campanhas educativas e a polícia para reprimir e até mesmo eliminar qualquer manifestação musical nos bairros e cidades mais pobres.  

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Chega de Saudade ®

     É com grande orgulho que uma coalizão internacional de cientistas anunciou a  invenção de uma máquina de teletransporte voltada exclusivamente para pessoas que estejam sentindo saudade.  O mecanismo consiste em uma poltrona em que o “ teletransportante” senta e deixa seu corpo ser conectado por eletrodos que, por sua vez, são programados para detectar os impulsos elétricos e neurotransmissores que o cérebro emite quando um ser humano sente saudades. Caso a máquina detectar ondas cerebrais compatíveis com o sentimento de saudade, é acionado a complicada aceleração de átomos que gera energia para a transferência direta da matéria do corpo para qualquer local do mundo em um tempo de no máximo duas horas. “Basta apenas sentir saudade de alguém e que próximo ao local que esse alguém esteja tenha uma subestação para finalizar o teletransporte” declarou um dos pesquisadores da equipe que criou a máquina.

    Dentro dessa nova era dos deslocamentos humanos alguns novos problemas se avizinham. Cientistas, políticos e lingüistas portugueses rapidamente articularam uma campanha para patentear o nome da máquina, alegando que a palavra  “saudade” seria exclusividade do idioma lusófono. Em um longo manifesto contendo  inúmeras citações dos poetas Camões e Fernando Pessoa,  composições de Fado e frases dos navegantes do século XVI, os lusitanos defendiam um suposto privilégio da língua portuguesa de ter um verbete específico para descrever os sentimentos de melancolia que tomam que tomam o ser humano ao sentir falta de alguém ou de algo que está distante. Desviando das questões de uma grave crise econômica que atravessava o seu país, o presidente português exaltava a volta de Portugal ao seu “lugar” de vanguarda das grandes viagens de descoberta da humanidade, agora não mais em naus e caravelas, mas nas poltronas do teletransporte.  Por sua vez, alguns artistas do Brasil tentaram elaborar seu próprio “ manifesto da saudade” alegando que esta palavra teve seu significado bastante influenciado pela cultura musical brasileira. Os brasileiros exigem que, ao menos, sejam tocadas os clássicos da bossa nova como música ambiente nos compartimentos da agora chamada” Máquina da Saudade” .  Nessas disputas não foram ouvidas as ambições políticas, culturais e nem opiniões dos representantes dos países lusófonos da África e Ásia.  Na verdade, esses continentes ganharam o centro das discussões  quando ministros e embaixadores de alguns Estados europeus  declararam preocupações quanto a  possibilidade de  quando a “Máquina da Saudade “  fosse popularizada, gerasse uma  imigração em massa - via teletransporte – para a Europa de parentes dos  cidadãos descendentes de  africanos e asiáticos. Os EUA também declararam algo parecido ao temer uma invasão de mexicanos e “outras espécies de latinos” nas palavras de um senador texano.  Os parlamentares destes países prometeram  propor leis e estatutos para controlar a saudade dos imigrantes e de seus familiares e, assim, manter a paz e a ordem pública.
   Setores das classes empresariais das grandes multinacionais levantaram as possibilidades do uso comercial da Máquina da Saudade como uma forma de transporte que iria evitar gastos de dinheiro e tempo com horas e horas de escalas e vôos dos representantes comerciais . Contudo,  como já foi dito, a máquina apenas funcionava com neurotransmissores específicos da “ saudade”: os empresários, acostumados a vida dinâmica de várias viagens, reuniões e compromissos em diferentes países pouco se importavam em sentir saudades e se as sentiam, era bem longe das viagens de negócio e das reuniões nas salas das empresas que estavam as pessoas que lhe faziam falta. ( Empresas de transporte aéreo, assustadas com a possibilidade de perder passageiros e até mesmo sua função, lançaram promoções que em outros tempos soariam irreais devido ao preço baixo das passagens). Uma conhecida multinacional do ramo farmacêutico lançou investimentos de pesquisa para que cientistas isolassem os transmissores químicos que permitem ao cérebro humano sentir saudade e assim, fazer pílula ou até mesmo uma injeção para viabilizar as viagens dos homens de negócio na Máquina da Saudade.  A “aspirina da saudade” iria se juntar as já conhecidas drogas , lícitas e ilícitas, para dormir,  manter-se acordado, acalmar e controlar ansiedade, controlar o apetite e outras disfunções do corpo humano submetido a uma rotina de viagens e compromissos que ultrapassam as 24 horas.  
   Debates filosóficos e teológicos foram mobilizados pelas possibilidades da “Máquina da Saudade”. Sociólogos e movimentos sociais preocupados com as transformações nas relações sociais causadas pela nova invenção  começaram a denunciar os perigos de uma “ditadura da saudade” para se encaixar nos padrões definidos pela Máquina.  Nos bares e restaurantes, bêbados e poetas clamavam versos aos sentimentos de saudade, faziam piadas  e se questionavam se aos domingos  - dia maior do tédio e do carrossel de lembranças mais forte – haveria um congestionamento e filas infinitas para utilizar as máquinas.  Também aos domingos os padres falavam suas preocupações e faziam reinterpretações da bíblia para adaptar os dogmas da Igreja Católica de acordo com as cartas e declarações do Papa sobre a Máquina da Saudade.  Alguns fiéis mais exaltados falavam que esta máquina era uma tentação e um sinal do Fim do Mundo:  era nada mais que o arrebatamento de pessoas profetizado no livro de Apocalipse. Os recém-casados, já estavam questionando sua fidelidade ao matrimônio, jurada diante de seus cônjuges e a Deus, caso pudessem usar discretamente a Máquina para rever seus namorados e namoradas do passado que ainda tinham saudade.  As cartomantes pensavam em como mudar suas propagandas nos jornais: falar que “ traz a pessoa amada em três dias” não faria mais sentido após a invenção da Máquina da Saudade.  Aqueles que sentiam  a mais dura das saudades - a da morte - enchiam os tinham esperança de que a Máquina fosse um dia aperfeiçoada para que pudessem rever os parentes mortos que tanto eles guardam nas suas memórias.   Cogitava-se também a capacidade da Máquina teletransportar partes de si distribuindo-se em vários locais com as diferentes pessoas que sentiam saudade. “A cabeça estaria no bar com os amigos, o corpo com as amantes, e talvez um pedaço da perna para os filhos”, Alguns, não satisfeitos em matar a saudade de pessoas, queriam saber se a Máquina também possibilitaria viajar no tempo e reviver os momentos das suas infâncias que deixaram saudades. Será que a Máquina da Saudade resolveria a eterna fábrica de insatisfações humanas de desejar incessante e de imediato coisas que não vai poder alcançar?

     As últimas notícias que temos falam de conflitos, protestos e resistências por parte de jovens de vários países a se cadastrar nos programas governamentais da Máquina da Saudade.  Eles alegam que a Máquina  vai fazer com que se perca a magia dos encontros e dos laços sentimentais entre os seres humanos. Preferem utilizar  os meios de comunicação comuns como a internet, telefone e videoconferências para expressar sua saudade. Alguns adolescentes até resolveram radicalizar a luta e aboliram até mesmo os celulares das suas estratégias de saudade. Montaram grupos de resgate de poesias e livros – um neo romantismo anti-teletransporte -  e enviam apenas cartões postais, telegramas, bilhetes e cartas as pessoas que lhe sentem falta. Assim “pode-se aproveitar mais intensamente os efeitos alucinógenos da saudade”; diz uma jovem francesa de 16 anos - mas vestida como uma nobre do século XV - que aboliu o celular e redes sociais da sua vida e pretende passar o próximo ano apenas visitando  amigos de infância que não vê há muito tempo. Um movimento mais violento são as ameaças de grupos terroristas de explodir bombas e seqüestrar cientistas que estejam envolvidos nos projetos da Máquina da Saudade.   Os serviços de inteligência de vários países investigam se esses terroristas estão sendo financiados diretamente pelas empresas do setor fonográfico que temem que a Máquina torne obsoletas as vendas no mercado de músicas. Como compor canções e emplacar sucessos de amor em um mundo que não há mais a saudade?

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Cronograma de uma faxina

(...) que tudo quanto contemplas mudará dentro de um instante e não mais existirá. Pensa em quantas mudanças já assististe. O cosmos é mutação; a vida, opinião.

( Marco Aurélio- Meditações) 




09:00 – Acordar, fazer café, preparar sabão, vassouras, panos, desinfetantes e luvas. Rasgar camisas velhas e usar também como pano de chão. 
10:00 – Limpando os quartos, tirar poeira das janelas, varrer, colocar produtos para deixar o chão brilhante.
11:30 – A faxina está adiantada. Já avançou nos 2 quartos do apartamento, tirou a poeira dos quadros de Charles Chaplin, retirou as manchas na moldura do quadro de Jesus – que mexe os olhos caso você mude de lado ao observa-lo.  Os CDs que ficam empilhados devem ser limpos um por um. 
13:30 – Saída para almoço. Como não fez o almoço em casa ficou mais fácil para limpar a cozinha. Deslizar as esponjas e terminar de lavar umas canecas e pratos que sobraram do jantar de ontem.
14:30 – Com a limpeza do banheiro pode-se dizer que a faxina está bastante adiantada no cronograma. Produtos para colocar no pano de chão, sprays de fragrância forte, naftalinas, usar água do chuveiro para encher o balde, molhar o pano. Passar o rodo. Usar luvas para limpar o vaso sanitário. O principal é esconder o cheiro que as pessoas produzem quando vão ao banheiro.
15:30 -   Falta apenas 1 quarto. Nem toda faxina que se faz na casa tem o objetivo limpar esse quarto.  É o quarto das tralhas, dos restos, das nuvens de poeira e seus fiéis guardiães: os cupins e baratas. As visitas da casa não vão pra esse quarto
15:40 – Começa retirando os livros de uma velha prateleira. Livros de primeiros socorros antigos. Parecem ter sido feitos entre a década de 1960 e 1970.  No meio do livro há  fotos de pessoas desmaiadas, picadas por cobras, insetos, com  queimaduras e fraturas. Fica a pergunta: como será que estão essas pessoas hoje? Como elas se sentem por seus ferimentos serem considerados exemplares? Elas estão mortas ou vivas? No fim do livro tem um aviso para cuidados em caso de uma bomba atômica estourar. O livro dá poucas esperanças . Apenas sugere  que, caso você sobreviva,  deve usar roupas brancas pra evitar a radiação.  
15:45 – Achou uma caixa com uma coleção de livros chamada de “ Manual de convivência familiar”. Os livros tinham pequenas aranhas amassadas entre uma das páginas que falavam como deve ser uma “ boa esposa, um bom filho, um bom marido”. Pensou se era melhor jogar fora aqueles livros ou se era melhor manter em casa empoeirando e sendo comido por traças. “Melhor essas ideias antigas mofando aqui em casa do que perambulando por ai” pensou. Mas ainda dava pra salvar um dos livros com receitas de tortas e bolos : independente dos valores familiares de quem fosse manipular o açúcar, leite e ovos e colocar no forno para assar ,
15:50 -  Achou suas antigas agendas. Pequenas anotações feitas em 2003, 1998, 2006, 2004 mostravam seus compromissos e tarefas para resolver naqueles dias que agora pareciam muito distantes. O “dever de casa” de matemática da quarta série no qual quase não conseguia fazer. Chorou muito por não saber fazer uma soma junto com uma duas divisões e uma multiplicação. Na agenda de 2004 tinha as assinaturas coloridas de algumas amigas. Em outras páginas das agendinhas  anotou um número e não colocou o nome. Não se sabe mais pra que e nem pra quem era aquele número.  Em 2011, folheou 10 dias da agenda do mês de setembro e viu que estava com um prazo pra cumprir. Anotava para não esquecer todo dia o nome do trabalho da universidade e no fim do mês, não conseguiu terminar a tempo. Ou melhor, terminou, mas ficou faltando algumas partes. Mas tudo correu bem.
16:00 – Achou em uma caixa de sapatos uma pilha de papéis. Um, que era mais largo, era o cardiograma de uma tia que faleceu há dois anos. 14 de outubro de 1999, quatro da tarde, dizia nos registros do exame. As curvas dos batimentos cardíacos subiam e desciam. O que se passava naquele coração para fazer com que fossem desenhadas as oscilações no papel quadriculado?
16:10 – Mas afinal de contas era uma caixa de sapatos ou um mausoléu coletivo? Embaixo do papelão havia algumas fotos de obituários. Interessante como são editadas as fotografias comuns das pessoas depois que elas morrem. Naquela foto de um amigo em frente a uma cachoeira, recortaram o rosto dele, colocaram em um papel de parede de nuvens e pôr-do-sol e por fim, colocaram a data e horário da missa de sétimo dia. Quando você morrer vão editar aquela sua foto na praia, vão esticar ou diminuir o seu sorriso e enquadrá-lo em um fundo de nuvens. Nada escapa a esse destino.

16:10 -  Contas de luz, extratos bancários apagados, cupons fiscais. 04 de outubro de 2006, tinha aberto a primeira conta bancária fazia menos de 1 mês e às 18h foi a um shopping conferir se tinha dinheiro. Tinha pouco, mas até que deu pra ir ao cinema e assistir um filme. Não dá pra ver que filme era, pois o ticket estava apagado.  Já o extrato da conta bancária no dia 19 de maio de 2010 trazia um cenário financeiro mais esperançoso do que em 2006. Mas havia  tinha outros gastos e preocupações. Comprou um DVD de uma banda pra presentear uma amiga nesse dia. Lembrou que estava em dúvida se o que sentia por ela era amizade ou algo diferente. Resolveu permanecer como amigos. Mas o valor baixo da conta de luz de julho de 2010 provava que algo diferente aconteceu na relação entre ele e sua amiga. Os dois viajaram todo aquele mês juntos e ele não teve tempo de produzir kilowhats em casa e nem de juntar tristezas naquele mês.
16:15 – Achou as caixas com presentes e cartas de namoradas, ex-namoradas, ficantes e outras espécies que habitam a fauna e flora dos corações, nervos e lembranças. Viu uns pacotes vazios de camisinha espalhados e achou difícil lembrar de como e quando tinha feito toda aquela diversão.  Escavou e leu as cartas. Não se sabe ainda se e nem quando o amor um dia acaba ou começa.  Mas jamais se duvidará de sua capacidade de dar e retirar sentido das coisas mais banais. Um saboroso lixo que serve para traçar trincheiras onde guerreiam colagens de revistas, trechos de músicas que se adaptavam ao casal, pedras achadas na rua, ursinhos, colares, ingressos de shows, origamis, papéis de hambúrguer de uma rede de fast food, tampas de garrafa, rolhas de vinho e botões de camisa.  Muitos momentos.
16:30 – As baratas, traças e cupins que estavam esquecidos saem de uns buracos entre as paredes e os livros. Não se sabe se pelo cheiro de mofo ou pelo peso das lembranças a faxina foi suspensa por tempo indeterminado.

                    
                                                                    ***
É no retalho, na aposta, a incompletude, os “quases”, na oscilação e nas probabilidades que a vida é costurada.   Infelizmente viajar no tempo não é como nos filmes de ficção.  Nós não pegamos um carro e escolhemos a data, nem temos como amigo um cientista excêntrico e dedicado a construir uma máquina com todas aquelas luzes e barulhos para ir ao passado ou ao futuro. Jamais um cavaleiro medieval irá aparecer na porta de nossa casa. Também é pouco provável que um andróide venha do futuro para nos salvar ou para iniciar uma guerra que irá dizimar mais da metade da humanidade. Basta uma lembrança e o efeito silencioso de algo escrito numa agenda, uma foto ou um bilhetinho de 8, 10 anos atrás para nos destruir ou vir a nos salvar de nós mesmos.





domingo, 22 de setembro de 2013

Al otro lado del rio

O reservado adolescente Heráclito adicionou um novo evento ao seu cotidiano: ir  logo cedo a um rio que passava próximo a cidade de Éfeso e ficar sentado nas margens ou colocar os pés na água e passar horas olhando pros círculos que a correnteza  fazia nos calcanhares.  Vez ou outra algumas crianças viam Heráclito e  começavam a imita-lo colocando e tirando os pés da água. . “Tudo flui” falou quase que automaticamente Heráclito ao apalpar uma grande espinha que vinha nascendo no seu queixo e ver ,em uma mesma cena, a risada das crianças no dando golpes na água, jogando gotas, formando espumas, bolhas e pequenos arco íris na luz do sol.  Heráclito sentiu uma grande alegria junto a uma vontade de ir a outra margem do rio.  Porém, suspirou e lamentou não saber nadar bem pra fazer isso
Indo para casa Heráclito para e vê uma multidão numa praça. E, entrando mais no centro da multidão, percebeu que o centro das atenções era um jovem bonito e bem vestido chamado Parmênides apresentado como filósofo e bajulado por lideranças políticas locais da cidade de Èfeso. Por um momento todos silenciaram e Parmênides começou a contar sobre um manuscrito que estava elaborando: um bocado de histórias sobre um pequeno príncipe que morava sozinho em uma ilha em que apareciam raposas e outros seres. Parmênides usou uma das reflexões desta fábula do principezinho – que desde o início Heráclito achou horrível e de mau gosto -  para falar da sua filosofia sobre a permanência de elementos do cosmos e  soltou a seguinte frase : “ o essencial é invisível aos olhos”. Neste exato momento o impulso crítico de Heráclito ganhou força e ele entrou em um dilema – muito comum nos dias atuais quando jovens vêem opiniões contraditórias nas redes sociais -  discordar ou não discordar?  Vale a pena discutir com esse babaca?. Ao mesmo tempo que Heráclito apertava a espinha no queixo a ponto de estoura-la ele sentia subir uma voz interior – como se um ventríloquo tivesse dado o comando, já estava  dizendo:

“Pelo contrário, não se pode tomar banho duas vezes no mesmo rio. Tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo”

Há mais panelinhas, fofocas e baixarias sobre as disputas entre Parmênides ( o filosófo da essência) e Heráclito ( o filósofo transformação) do que nossa vã filosofia possa acreditar. A famosa frase do rio gerou toda uma fúria por parte de Parmênides. Habituado – na sua essência- a não ser contrariado pelos pais ele viu em Heráclito um oponente que precisava destruir a todo custo. Nem sequer pediu pra Heráclito explicar melhor a sua questão fluvial e foi logo fazendo apostas: “ desafio você a provar isso no próprio rio”.  Heráclito aceitou a proposta.
Com uma multidão acompanhando, os dois chegaram a o rio que passava perto de Éfeso.  Heráclito apresentou seu argumento colocando os pés na água durante duas vezes. Na primeira vez  apenas colocou os pés na água e depois saiu – nesse momento alguns habitantes de Éfeso juram que viram Heráclito andando na superfície do rio, mas não há provas disso. Na segunda vez colocou dinovo os pés na água  e jogou uma folha seca no rio. Por fim, apontou ela sendo levada pela correnteza.  O argumento estava pronto.  
Parmênides estava horrorizado pois não sabia explicar sua ideia outrora tão brilhante de essência diante desta visão da folha ziguezagueando e indo embora na correnteza.  (Pior era o público que entediado com a disputa foi aos poucos esvaziando as margens do rio).  Atacado de fúria Parmênides foi para a hospedaria da cidade,  pensar alguma forma de contrariar a brilhante constatação de Heráclito. Os três seguintes dias foram dedicados as mais variadas e bizarras ações comandadas por Parmênides:

Primeiro dia: Parmênides contratou um certo número de escravos para cavar buracos e encher eles com a água do rio: com a água parada poderia provar a essência das coisas ( além de tentar causar uma epidemia de dengue na cidade).  Mas com o tempo a água dos buracos  batia na terra e virava lama ou evaporava.  Heráclito olhava apenas sorrindo e repetia “ tudo flui”. E repetidas vezes Parmênides deu ordens aos escravos para cavar grandes buracos, chegando mesmo a construir um pequeno lago desviando água do rio.  Parmênides também sugeriu que os escravos fizessem uma pequena ponte de madeira no rio para provar que a ponte era essência e o rio a aparência. Não se sabe se cansados de levar insultos e chicotadas ou se por uma afinidade filosófica com Heráclito os escravos se reuniram e elegeram um líder para dizer a Parmênides: “ não adianta, tudo flui”

Segundo dia: Pobres  animais que se envolvem nas disputas entre dois filósofos!. Principalmente quando um dos filósofos odiava ser contrariado. No segundo dia Parmênides comprou um grande rebanho de bois e cabras e, em seguida, mandou matar todos e retirar o couro dos animais.  Em seguida, encomendou a todos os alfaiates de Èfeso que costurassem a pele dos animais e juntassem umas estacas de forma a fazer um “ depósito” de  água do tamanho de uma piscina dessas que as crianças dos dias atuais usam para se banhar aos domingos. Orgulhoso e crente de que agora o argumento de Heráclito ia ser vencido, Parmênides se despiu e caiu na piscina. Porém após um tempo ao sol o couro dos animais ressecou e as costuras se romperam estourando a água e o filosófo  Parmênides por todos os lados.  “ Tudo flui” disse novamente Heráclito ao ver Parmênides pelado caído em uma mistura de lama e  pedaços de couro que começavam a apodrecer.

Terceiro e último dia:  Tudo aparentava que Parmênides,  após a humilhação do dia anterior, tinha ido embora de Éfeso. Então Heráclito  seguiu sua rotina de ir ao rio molhar os pés e brincar com as crianças. Contudo já próximo ao rio Heráclito pisou em uma pedra e ela afundou. Era um buraco feito pelos escravos de Parmênides. E o pior: estava cheio de esterco de vaca.  Parmênides apareceu sorrindo na parte de cima do buraco e jogou uma corda. Com a habitual calma Heráclito subiu e recebeu as zombarias de Parmênides: “ veja bem, meu argumento está certo: há uma essência e uma aparência, você está sujo de merda, resta escolher se isso é sua essência ou aparência”

  É deveras intrigante imaginar que toda uma disputa filosófica acerca de uma ética de transformação e outra de imanência que dividiu e ainda divide o pensamento humano poder ter sido travada em torno de excrementos de animais. Sujo de bosta, Heráclito ignorou as risadas de Parmênides e seguiu rumo ao rio. Chegando lá colocou os pés na água e foi mais fundo e deixou a correnteza bater sob seu corpo levando os pedaços e porções de merda que estavam no seu corpo.  Em seguida mergulhou a cabeça.  Esse “desbatismo” fecal de Heráclito foi o sinal da derrota de Parmênides. A sensação de que tinha perdido aumentou ainda mais quando crianças que estavam perto do rio se aproximaram e fizeram uma espécie de círculo e dançavam em torno do filosófo da “ essência” . As crianças cantarolavam dizendo que “tudo flui e tudo se transforma”.  Enquanto isso, Heráclito percebeu que já estava fazendo um Sol alaranjado do fim da tarde. No reflexo das águas do rio enxergou a real beleza no fato de tudo ser transitório. Heráclito sentiu algo que até então era indescritível e inexplicável – e continuou sendo por milênios até o século XX quando o escritor Marcel Proust descreveu a sensação de nostalgia e infinitude sentida por um personagem dos seus livros ao comer um bolinho e tomar um gole de chá. Após limpar toda aquela merda, Heráclito mergulhou novamente no rio e dessa vez não foi mais visto. Não se sabe se ele tentou nadar ou se deixou apenas levar pela correnteza.